A
CONSCIÊNCIA CÓSMICA DO ÍNDIO
Senador
Evandro Carreira
Brasília - 1978
Há
uma verdade que sobressalta aos olhos e ao entendimento da mais
retardada de todas as criaturas - as civilizações
indígenas do planeta foram violentadas e massacradas
num verdadeiro genocídio, pela avalanche de uma Civilização
Antropofágica.
A
grande questão indígena coloca-se exatamente na
arguição ontológica e teleológica,
isto é, na verdadeira origem e destino do homem.
Quem
estará certa: a grande sociedade de consumo na sua corrida
desenfreada e atropelante, na abertura de mercados consumidores
e aquisição de melhores técnicas de produção
ou as civilizações indianistas que se conformaram
com uma simples relação social de produção?
Reconhecemos
que a lei da sobrevivência do indivíduo, inegavelmente,
condicionou o grande salto que a humanidade dera, distanciando-se
dos seus ancestrais simiescos; não fora o afã
de sobreviver às adversidades e modificando o meio mercê
de utensílios que o tornaram homo faber, o nosso ancestral
não teria atingido o estágio homo loquens.
No
entanto, exarcebar esse comportamento a ponto de desenvolver
uma Civilização Antropofágica, cujos integrantes
se ocupam essencialmente do desenvolvimento de uma tecnologia
homicida, quer no relacionamento entre nações,
quer no relacionamento entre grupos, quer no relacionamento
individual; todos absortos numa única preocupação:
possuir instrumental capaz de garantir a sua sobrevivência,
mesmo que para tanto sejam obrigados a devorar o vizinho.
Não
teria sido preferível permanecer naquele estágio
tecnológico em que ficaram estagnadas as civilizações
indígenas, cujo envolver espiritual nos causa inveja
ao investigarmos estes valores que cultuaram e ainda cultuam
nos núcleos sobreviventes, principalmente no âmago
da selva amazônica?
Deve
ter ocorrido em determinado momento da história do homem
um fenômeno inusitado, pois concluí-se ao pervagar
a sua história que, em dado instante do neolítico,
algumas civilizações encetaram a corrida desabalada
pelos caminhos da sociedade de consumo, ou melhor, da Sociedade
Antropofágica, desprezando os valores espirituais que
se ligam às origens e ao destino do homem, valorizando
eternizar o homem como ser puramente biológico; enquanto
outros grupos éticos relegaram a segundo plano o aperfeiçoamento
de novas técnicas que porventura se contrapusessem à
sua preocupação de primeiro plano que era o aperfeiçoamento
dos valores espirituais - as culturas indígenas.
Situa-se
portanto a grande questão indígena na questão
maior da existência ou não de uma Força
Cósmica geradora de todos os Universos.
No
momento crucial da humanidade, quando ocorreu o primeiro grande
cisma, não teria o grupo que optou pela Sociedade Antropofágica,
perdido por razões ainda a perquirir, o contacto sublime
com esta grande Consciência Cósmica, e não
teria o outro que hiperbolizou os valores espirituais em detrimento
dos materiais, permanecido em sintonia com a grande força
geradora de todos os fenômenos?
Há
uma grande verdade que ressalta aos olhos e ao entendimento
da mais retardada das criaturas: o celebérrimo progresso
está perturbando o equilíbrio biológico
do planeta e do homem, constituindo a desintegração
atômica a nova besta do apocalipse.
Cada
vez mais o homem interfere e se imiscui nos ecossistemas, cujos
arranjos e tessituras foram urdidos pela mãe natureza,
ao sabor de milhões e milhões de anos, obediente
a uma Verdade Cósmica - o equilíbrio mais fácil
e mais perene -, verdade que Pascal surpreendera quando dissera,
"a natureza sempre acha o caminho mais seguro e mais fácil,
ou, a natureza não faz por mais o que pode fazer por
menos"
No
entanto, a sofreguidão do imediatismo se abate sobre
florestas desvastando-as, sobre rios, lagos e mares infectando-os
com os dejetos industriais, sobre a atmosfera, poluindo-a com
o vômito de anidrido carbônico do novo dragão,
o novo tiranossauro do século XX - o automóvel
-, além do clorofluorometano destruindo a camada de ozônio
que nos proteje dos raios ultravioletas.
Cada
vez mais a sociedade de consumo aglutina e concentra populações
nas megalópoles, para facilitar o processo de consumir
e acelerar as técnicas de produção que
irão por sua vez reacelerar o consumo.
A
própria megalópole teve sua origem na derrubada
dos altares da família da cúria ou fratria e da
tribo, altares que o índio continua cultuando.
Com
o aparecimento da urbe ou da polis e sua consequente hipertrofia,
os valores místicos que ligaram à Genetriz de
todas as coisas ficaram seriamente comprometidos, e a humanidade
sem projeção metabiológica passou a cultuar
o imediatismo, o momento fugidio que se volatiza como as drogas
que consome, passou ao antropofagismo, muito bem sintetizado
pelo aforismo de Hobbes "o homem é lobo do próprio
homem" e hodiernamente representado pela prostituição,
pelo terrorismo, pela fome, pela criminalidade e essencialmente
pela desconfiança, prevenção e ódio
com que os seres humanos se entreolham ao cruzarem nas ruas,
avenidas e metrôs, cada um presumindo no parceiro um assaltante,
um vigarista, em resumo: uma outra fera a espreitá-lo
para o bote.
Como
resultado maior do entredevoramento, chegou o homem a libertar
a energia contida no átomo e experimentou-a matando centenas
de milhares de semelhantes em 1945, nas cidades de Hiroshima
e Nagasaki. Ainda não satisfeitos, aperfeiçoou
o novo totem escatológico e hoje é capaz de estilhaçar
o próprio planeta. Porém, não era o bastante,
faltava pôr a nova técnica a serviço do
imediatismo monetarista e foram construídas usinas nucleares,
cujo lixo é um elemento que inexistia no planeta, o PLUTÔNIO,
cuja periculosidade é tão grande que o homem não
sabe onde depositá-lo com absoluta confiança.
Esta
é a Civilização Antropofágica, cuja
realidade é inconteste e cujo destino ela mesma ignora,
pois está à mercê do aperto de um botão,
que pode ser vermelho, branco ou azul. O fato é que milhares
de foguetes, com múltiplas ogivas, estão apontados
para as capitais do mundo, aptos a pulverizá-las e em
seguida dispersar radioatividade, capaz de extinguir todas as
forças vivas do planeta.
Há
uma outra verdade que cresce cada dia diante da mais retardada
das criaturas: o índio é feliz, vivendo em harmonia
com a natureza e é consciente da continuidade do fenômeno
humano.
O
índio sabe que o ecossistema que habita foi arrumado
por uma força e sabedoria superiores à sua, não
lhe cabendo interferir além dos limites que condicionam
a sua sobreviência natural; nesse entendimento reside
o grande relacionamento que ele mantém com a Consciência
Cósmica.
O
índio sabe que a Grande Força, quando o arrumou
no planeta, o fez em harmonia com tudo o que existe, principalmente
com os outros animais e as plantas. Agir temerariamente, além
das suas necessidades imperiosas de sobrevivência, perturbando
o equilíbrio vital, representa uma ofensa a si mesmo.
O
índio sabe que a evolução prossegue além
dele e a criatura humana não foi a última coisa
feita pela Consciência Cósmica, sendo apenas um
elo da grande corrente evolutiva que tende para o encontro com
os três grandes andeios do homo sapiens: a onisciência,
a onipresença e a onipotência.
O
índio sabe que cada árvore é um universo
e por isso é um dendrófilo e, tal qual o sacerdote
druida, venera os espíritos da floresta, incorporados
em cada espécime, não permitindo que sejam abatidas
indiscriminadamente . Quando desmata para fazer roça
(plantio de madioca), limita-se a um ou dois hectares e sabe
que, em dois ou três anos, o processo de lixiviação
carregará a tênue biomassa que suportava o fenômeno
vital da área desmatada; descloca-se em seguida para
outro desmatamento, porém distante do anterior centenas
de metros, promovendo a descontinuidade da ferida ocasionada
no tapete verde e facultando a rápida regeneração
da epiderme florestal.
O
índio sabe, por ter permanecido em sintonia com a Consciência
Cósmica, que a criança está mais perto
dos Valores Reais do que o adulto e não a maltrata e
não a castiga fisicamente; a puericultura indígena
tem mais o que ensinar aos pedagogos da Sociedade Antropofágica
do que todos os tratados.
O
índio sabe uma terapêutica que aprendera ao sabor
dos milênios, em convívio com as plantas, promovendo
curas miraculosas e elaborando o curare (anestésico insuperável),
reduzindo o tamanho de crânios, mercê de cozimento.
O
índio sabe que a morte é um fenômeno de
passagem e convive tranquilamente com o além-morte, onde
tem prosseguimento a evolução que começou
do primeiro pântano, como simples substância protéica;
convive com o mundo espiritual, sem o desespero do moribundo
da Sociedade Antropofágica e seus familiares, que só
acreditam no bezerro de ouro.
O
índio sabe manipuar a telepatia, substância encontrada
em uma planta que toma múltiplos nomes, conforme a região,
e possui um alucinógeno capaz de transportar o indivíduo
ao futuro. Manipula também forças parapsicológicas
que lhe dão certeza de outras dimensões onde a
energia sutil se realiza.
O
índio sabe preservar os alimentos obtidos na caça
e na pesca através de processos que a Sociedade Antropofágica
não conseguiu até hoje, exemplificando: a mexira,
processo de conservação protéica, tomando
como base a gordura do próprio animal, que assim conservada
permanece por meses e meses; a celebérrima piracuí
ou farinha de peixe é um outro processo de conservação,
sobressaltando uma outra técnica por defumação,
que, além de preservar a carne do peixe, lhe dá
um sabor agradável, podendo ser ingerido sem qualquer
cozimento, ou outro meio culinário. Com a mandioca o
índio elaborou um alimento que até hoje é
a base de toda a nutrição das populações
menos aquinhoadas: a farinha. Sabe-se que a mandioca é
venenosa, e o índio, por uma técnica de fermentação,
a transformou em alimento básico, chegando a fabricar
o decantado pão do índio, cuja massa de mandioca
é submetida a infusões que só ele conhece,
e enterrada para durar dezenas e dezenas de anos.
Poderíamos
continuar indefinidamente, recitando tudo aquilo que o índio
sabe e que as civilizações antropofágicas
não sabem, mas o espaço de uma revista é
exíguo para esta pormenorização. No entanto,
qualquer consulta, por mais superficial, poderá aduzir
mais razões em favor das culturas indígenas.
Torna-se
portanto imperioso nesta hora decisiva, para o que resta das
culturas índigenas e para a própria Civilização
Antropofágica, uma trégua, um suspender do massacre,
a fim que o próprio algoz inventarie os resultados da
sua autofagia e, ao se debruçar sobre si mesma, a sociedade
de consumo reconheça que está-se autodevorando
e, inspirada nos resquícios do que puder preservar de
um reencontro daquele lapso perdido no neolítico, que
representava a garantia de sua perpetuidade no planeta.
Condenamos
eloquentemente o comportamento piegas e ridículo que
se pretende no relacionamento com o índio. Tem sido até
hoje a cultura indígena tratada com piedade, como se
seus integrantes necessitassem da caridade da Sociedade Antropofágica.
O
índio não precisa de caridade e nem da piedade
de uma civilização que se entredevora, de uma
sociedade que se precipita no abismo do egocentrismo.
O
que o índio precisa é ser preservado no seu habitat,
no seu caldo de cultura, onde se realize em plenitude e possa
oferecer a sua contribuição válida à
sociedade de consumo.
Conclui-se
que uma simbiose das duas culturas, retirando da antropofágica
o seu desenvolvimento científico e da indígena
o seu desenvolvimento espiritual - nesse ecletismo teríamos
talvez a sociedade ideal, para, preservando a vida no pleneta
e cultivando o aperfeiçoamento da pesquisa científica,
preparando o homem para ocupar todo o sistema planetário
e desembarcar em outras galáxias na procura do Absoluto.